(no jornal do FC Porto, em 1986)
Corria o ano de 1986. A 23 de Fevereiro a Académica recebeu o FC Porto no Calhabé e perdeu por 2-1. Chovia “se Deus a dava”. O jogo entrou para a história. Futre mergulhou na “piscina” e o árbitro assinalou “penalty”. [O próprio jogador diria mais tarde algo do género: «Se eu não saltasse, ele partia-me a perna». Ou seja, ninguém tocou em Futre, ele saltou e… grande penalidade.]
Na altura eu era colaborador do primeiro diário desportivo português, “O Jogo”, que há dois dias entrara no 2.º ano de publicação. [A minha profissão principal ainda era a de professor: leccionava Didáctica da Língua Portuguesa na Escola do Magistério Primário.] Nesse Académica-FC Porto, o jornal mandara um redactor do Porto, o Valle Fernandes, que tinha uma casa (então já desabitada) na Rua do Teodoro, e um repórter fotográfico, o Álvaro Macedo. A mim coube-me a apreciação dos jogadores das duas equipas e do trabalho do árbitro. O Fernando Madaíl ocupou-se de recolher as opiniões à porta das cabinas. Uma equipa grande para um jogo grande.
O árbitro foi Raul Ribeiro, de Aveiro. [Se bem me recordo, era na altura funcionário da Revigrés e foi mais tarde funcionário da Câmara Municipal de Aveiro.] Raul Ribeiro esteve tão mal que lhe atribuí a nota mínima: zero. Escrevi então: «O primeiro “penalty” não existiu, pela simples razão de que ninguém tocou em Futre. Os descontos foram perfeitamente exagerados. A desigualdade de critérios foi constante». [O primeiro “penalty”, ainda antes do intervalo, foi desperdiçado por Gomes, que rematou ao lado. O FC Porto chegou à vitória com outro “penalty”, marcado por André, já depois dos 90 minutos.]
Naquele tempo, os árbitros prestavam declarações aos jornalistas no final dos jogos. Foi o que fez Raul Ribeiro. E depois de afirmar que «não sou adepto do FC Porto, porque eu sou do Belenenses», disse que marcou o “penalty” decisivo quando «faltavam ainda três minutos para terminar o jogo, porque costumo parar o cronómetro quando há jogadores a receberem tratamento, substituições e outras paragens». Erro crasso, porque este comportamento não está, nem nunca esteve, previsto nas Leis do Futebol.
Por isso, na quarta-feira seguinte, publiquei um texto intitulado “Raul Ribeiro e os seus cronómetros: um caso de má interpretação da lei”. Explicava que a cronometragem de um jogo de futebol não é igual à de uma partida de basquetebol (em que o cronómetro pára sempre que a bola não está em jogo) e juntava até opiniões de um jornalista do “Diário Popular” («Os minutos dados a mais não tiveram a mínima justificação», Costa Santos) e de outro de “A Bola” («Prolongou o tempo de jogo para além do justificado», Joaquim Rita). E pensei que o assunto morreria por ali.
Mas isso não sucedeu. Dois dias depois, na sexta-feira, surgiram desenvolvimentos. Na “Gazeta dos Desportos”, o jornalista brasileiro Wilson Brasil, que se tornou conhecido por atribuir anualmente os prémios “Gandula” (o apanha-bolas, no Brasil), destacou o comentário na “Minha selecção”, uma espécie de pódio semanal, com os seguintes termos: «Mário Martins, pelo realista e inteligente comentário ‘Raul Ribeiro e os seus cronómetros’». Foi a primeira e única vez que tal sucedeu.
Nesse dia, viajei para o Funchal para fazer a reportagem de um jogo da selecção B de Portugal. E foi de lá que liguei para a delegação de “O Jogo” em Coimbra, para saber se estava tudo a correr com normalidade. Diz-me o Fernando Madaíl: «Chegou uma carta do FC Porto para ti». Pedi-lhe que a abrisse e a lesse ao telefone. Ele assim fez. Eram duas folhas em papel timbrado, com o emblema do clube em relevo e a cores, uma carta violenta, a criticar duramente o tal texto sobre os cronómetros de Raul Ribeiro.
O director de “O Jogo” decidiu não publicar a carta no jornal, impedindo-me assim de dar uma resposta pública. Mas respondi pessoalmente ao subscritor, Álvaro Braga Júnior, então funcionário do Departamento de Futebol do FC Porto. Lamento ainda não ter encontrado a carta, mas enviei-lhe (entre a carta propriamente dita e os “anexos”) um envelope com mais de 15 ou 20 folhas.
O jornal do FC Porto viria a publicar a carta de Álvaro Braga Júnior no dia 5 de Março, ao alto da página 3, com o seguinte título em maiúsculas: «Já o conhecemos sr. Mário Martins».
[Até hoje (não sou parvo, mas…) ainda não percebi uma coisa: tendo eu escrito um texto sobre o árbitro Raul Ribeiro, porque é que foi o FC Porto a responder-me?]
Resta acrescentar que o texto azul-e-branco não desmente nada do que escrevi, limitando-se a criticar-me por alegados maus desempenhos aquando da passagem pela arbitragem do futebol, como auxiliar do juiz conimbricense Castro e Sousa. Mas até nesse aspecto o referido Álvaro Braga Júnior mete “a pata na poça”: na época a que ele se refere, a equipa de arbitragem de que fazia parte, do 1.º escalão nacional, ficou classificada no 8.º lugar, entre 34 equipas. Nada mau.
[E isto levanta-me uma outra dúvida, nunca respondida: como é que o FC Porto tinha acesso aos relatórios dos delegados técnicos que avaliavam os árbitros?]
Para concluir: o “episódio Raul Ribeiro” é um daqueles que mais me deixa honrado em quatro décadas de jornalismo.
[Meses mais tarde, em Julho, na Figueira da Foz, aquando de um jogo particular de pré-época entre a Académica e o FC Porto, à porta dos balneários do estádio, tive oportunidade de “agradecer” pessoalmente ao autor do texto (e ao presidente do clube portuense, que estava ao lado), na frente do então presidente da Académica, o inesquecível Jorge Anjinho. Afinal, não é todos os dias que se tem a “honra” de ver o nome escrito num título de jornal, em caixa alta… Mas isso é impublicável, porque não há registo escrito.]
EM ANEXO: imagens dos textos referidos nesta crónica.
O JOGO – Capa da edição de 24/2/1986
ARTIGO – A explicação do erro grave de Raul Ribeiro
ELOGIO – O texto de Wilson Brasil
JORNAL – Cabeçalho do jornal do clube azul-e-branco
RESPOSTA – A carta dirigida a mim divulgada publicamente
AUTOR – Álvaro Braga Júnior (à esquerda), ladeado por Futre
CLASSIFICAÇÃO – Castro e Sousa em 8.º lugar entre 34 árbitros