SALVADOR MASSANO CARDOSO *
Não sinto grande atração pelas passagens de ano. Considero, no entanto, que é um ótimo pretexto para as pessoas se divertirem, permitindo que a maioria da população planetária conspire ao mesmo tempo em perfeita sintonia com os fusos horários. Uma repetição cansativa. Presumo que toda aquela alegria, construída em seu redor, se deva ao facto de terem terminado com a vida a um ano, mais do que festejar a vinda de um novo, sempre imprevisível e frequentemente ingrato.
Tento reviver os meus momentos de fim de ano. Nada de especial, considerando que nunca os desfrutei com a exuberância com que pretensiosamente devem ser festejados, exceto, talvez, em criança. Nessas alturas alegrava-me a ideia do fim de ano, porque permitia-me cantar as Janeiras. Ia de casa em casa, umas vezes sozinho outras com os meus amigos. Recebia nozes, passas, bolos e, sobretudo, alguns valentes tostões, cinco, dez, vinte e cinco e, uma vez por outra, mesmo cinco escudos, o que era uma verdadeira proeza. As saídas à noite, desrespeitando os tradicionais horários de recolha, eram, per si, uma maravilha, ao permitir que apreciássemos o significado de liberdade, versão infantil, claro está! Bater e entrar em casas, em que o braseiro das lareiras e o velho candeeiro de petróleo constituíam as únicas fontes de iluminação, era muito mais agradável e quente do que as que ofereciam uma amarelada e fraquíssima luz elétrica capaz de esfriar a vontade da alma mais quente.
Nunca participei na corrida contra o “velho”, em que se usava todo o tipo de instrumentos capazes de produzir barulho, mas os chocalhos eram os que predominavam. Lá em casa havia dois, um grande, que ninguém levava, devido ao peso, obviamente, e um mais pequeno, muito jeitoso, que tinha uma sonoridade única e que era requisitado por alguns familiares. Eu era capaz de o identificar entre todos os outros artefactos. Nunca mais o vi nem ouvi, mas, hoje, se por qualquer motivo tivesse de o ouvir, seria capaz de o identificar. Um som inocente que, misturado com o somatório das doze badaladas do respeitável sino da igreja e o cantar das águas da ribeira, afugentavam qualquer mal personificado no findar do ano.
Outras vezes comemorava a chegada do “ano bom” no café, vendo programas televisivos construídos para o efeito, ou em pequenas festas improvisadas à última hora, sempre mergulhadas em frias e escuras noites, mas sem grande entusiasmo. Nem daquela vez, em que quatro adolescentes, num supetão habitual da turbulência da idade, se lembraram de atacar uma capoeira, sacando do sossego uma pobre galinha que nem um cácárácácá conseguiu emitir, me entusiasmou. Pobre animal que se viu alvo de um sacrifício improvisado ao novo ano. A casa, vazia, de um de nós, foi escolhida para templo. E agora? Como cozinhar? Vamos à fábrica, que está mesmo em frente e sacamos alguma madeira. O pior é que estava molhada e resistia a qualquer tentativa de acendimento. O fumo começou a incomodar e os sinais de insucesso eram mais do que evidentes. Mesmo assim, teimosamente insistiam no propósito. Vinho? Esse não faltava, a adega estava recheada. Comer galinha sem mais nada? É preciso pão. E agora? Já passa da meia-noite! Melhor! Vai-se à padaria. À padaria? Mas fica do outro lado da vila! Fica longe. Quem é que vai lá? Olhámos uns para outros e como era o mais novo vi de imediato dedos a apontaram-me. Ainda tentei refutar, mas sem sucesso. Fiz um rápido balanço da situação. A meia-noite já tinha ido há algum tempo, o fumo não agoirava nada de bom quanto ao futuro do lume, a galinha ainda não tinha sido depenada e não havia água quente. Pus-me a caminho contrariado. Noite fria, demasiado, com um vento cortante. Cheio de sono, vi-me em frente da minha casa, já não sentia os dedos e o nariz ameaçava a cair a qualquer momento. Tinha de andar mais de um quilómetro, regressar, passar novamente em frente da minha casa, voltar a subir a avenida para chegar à casa dos pais do meu amigo, que na altura estavam em África. Muito provavelmente ainda iria assistir à luta para atiçar o lume. Parei, abri a porta e deitei-me. Não digo que ainda hoje estão à espera do pão quentinho. Não. Não estão. Éramos quatro amigos, e os três que ficaram no aconchego da casa a quererem acender a lareira para tratar do galináceo, desiderato que nunca conseguiram concretizar, porque madeira molhada não arde, desapareceram. Durante algum tempo ainda me chegaram a perguntar se “o pão estava quentinho”. Não sei, respondia. Mas rematava: «Eu é que tive de ir para o quentinho. Numa noite daquelas só um louco andava na rua a beber ar gelado». Depois deixei de ouvir o ditote. Desapareceram os três, ainda novos…
* Médico