18.2 C
Coimbra
Quinta-feira, 1 Junho, 2023
InícioDESTAQUEConversas

Conversas [Vasco Francisco]

beiral

 

VASCO FRANCISCO *

A vida conta mais um dia, este que finda no ato mais natural desta paisagem. Som e cor, o horizonte é verde e a hora é perfeita. Sete horas badalam no sino da torre, esta que faz plano nas fotografias mais antigas deste recanto. A nudez de um cordeiro que acaba de nascer traz ao mundo um novo louvor por parte do pastor que olha a cria que a ovelha lambe e limpa com um afeto tão maternal. Tudo nasce e renasce nesta natureza primaveril. Como uma simples paisagem pode curar a moléstia. Não há melhor remédio para o stress. Um frasco de ar puro, um frasco de silêncio, duas doses de água fresca e a infinita contemplação, de uma paisagem tão simples e tão bela. Tudo se conjuga num único cenário, os pardais que cantam, a água que corre, as árvores em flor, as urzes e os tojos, os malmequeres campestres, até aprofundar a visão nas flores miudinhas do horto e dos saramagos. O verde constante dos campos e os raios de sol incidem nos lameiros e nos telhados sujos que o vento vai varrendo quando sopra. Não há palavras que se escrevam para descrever este que é um dos mais bonitos quadros que já vi.

Um rosto que chega da cidade é saudado por um aldeão, que olha o estudante e percebe de onde ele vem. Debaixo de um beiral sombrio, quatro homens, todos reformados, aproveitam o despejar do dia para pôr a conversa em dia. Estes homens que aconselham os mais jovens com curiosas lições de vida, histórias de velha idade, que farão para sempre sentido por parte do neto, do vizinho ou do visitante que as ouve. A conversa remete aos fazeres da lavoura e das sementeiras, ao quotidiano de uma aldeia beirã e quando por vezes se desvia o assunto cai sobre as palavras os temas que se vão ouvindo nos meios de comunicação. Dizem que para eles a vida não está má, mas que para mim, jovem estudante, o futuro tem de se agarrar como este se oferecer. Dizem que já sustentaram os filhos e trabalharam em tempos também eles difíceis mas diferentes. “Crise”. Desbravam a palavra com vozes grosseiras e irritadas, com angústia e tudo acaba a dizer que somos governados por mais de 40 ladrões. Um mulherio que passa na rua entra na conversa e os homens desprezam a cultura das mulheres, que desviam a conversa a dizer que já nem têm dinheiro para os medicamentos.

Ouço estas conversas com curiosidade e confirmo que há tantas maneiras de ver o estado em que vivemos. Em 18 anos, já vi no mundo serem eleitos três papas e três presidentes da República. Igreja e política, e é com o número 3 que enuncio o que mais se fala no mundo: politica, religião e inovação. A palavra que mais me assusta é a política, por momentos penso que não vale a pena pensar nela, mas alguém dizia que «a História diz-nos quem fomos, mas é a política que tem de nos dizer quem iremos ser». Esse alguém foi uma das pessoas que melhor descreveu Portugal até hoje, José Hermano Saraiva. Como católico reconheço erros e certezas, mas a verdade é mentira para alguns. A inovação é a única palavra em que me fio, essa sim, sei que não para de surpreender. O mundo avança, a mudança é constante, a tecnologia é talvez o maior engenho que suporta o mundo. Para inovar é necessário preservar, sonhar e realizar, só assim se completa atualmente a vida humana. No tempo dos quatro homens que estavam sentados à sombra não havia metade das coisas que hoje há. Pessoalmente, acredito que naquele tempo a vida seria mais alegre, quanto mais se inova mais preocupações aparecem, mas sem inovação não se vai longe. Até eles que nos transmitem e preservam o que tinham há uns 70 anos atrás, hoje não conseguem viver sem o que de novo apareceu.

A inovação não está presente apenas nos objetos, nos novos meios, mas sim também nas próprias pessoas. O ser humano também traduz uma grande parte da inovação, desde o sentimento ao mais irregular.
Inovar é o principal ato do mundo, que o meio rural acompanha e por vezes salienta e concretiza a própria inovação com mais força.

Os últimos raios de sol lançam-se já com um ar frio e leve. Um carro chega à povoação e dele sai uma família que faz da aldeia o seu lar e da cidade o seu mealheiro. Estacionado debaixo de um velho telheiro, onde se expõe um antigo carro de bois, que sobressai na recordação, o automóvel faz daquele coberto a sua garagem. A lua já se vê, branca e saliente, como candeia da noite que brilha conjuntamente com as estrelas que a rodeiam e que alumiam a escuridão que esmorece na madrugada.

Semide, 13 de março de 2014

* aluno do Ensino Secundário, 18 anos

web-Vasco-Francisco

[Nota: o autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.]

RELATED ARTICLES

3 COMENTÁRIOS

  1. Muito bem. Gostei muito deste texto. Não há melhor cenário como o que lhe serve de base, a ruralidade, para nos transmitir os sentimentos de uma comunidade, caractarizada pela sua ancestralidade, onde a simbiose do tempo, do espaço e da natureza humana melhor retratam o seu modus vivendi.
    Estamos perante um jovem muito promissor no campo literário.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

- Advertisment -

Most Popular

Recent Comments

Célia Franco on Redacção da TSF ocupada
Maria da Conceição de Oliveira on Liceu D. Maria: reencontro 40 anos depois
maria fernanda martins correia on Água em Coimbra 54% mais cara do que em Lisboa
Eduardo Varandas on Conversas [Vasco Francisco]
Emília Trindade on Um nascimento atribulado
Emília Trindade on Sonhos… [Mário Nicolau]
Emília Trindade on Sonhos… [Mário Nicolau]
José da Conceição Taborda on João Silva
Cristina Figueiredo on Encontro Bata Azul 40 anos
Maria Emília Seabra on Registos – I [Eduardo Aroso]
São Romeiro on Encontro Bata Azul 40 anos
Maria do Rosário Portugal on Ricardo Castanheira é suspenso e abandona PS
M Conceição Rosa on Quando a filha escreve no jornal…
José Maria Carvalho Ferreira on COIMBRA JORNAL tem novos colaboradores
Maria Isabel Teixeira Gomes on COIMBRA JORNAL tem novos colaboradores
Maria de Fátima Martins on Prof. Jorge Santos terminou a viagem
margarida Pedroso de lima on Prof. Jorge Santos terminou a viagem
Manuel Henrique Saraiva on Como eu vi o “Prós e Contras” da RTP
Armando Manuel Silvério Colaço on Qual é a maior nódoa negra de Coimbra?
Maria de Fátima Pedroso Barata Feio Sariva on Encarnação inaugurou Coreto com mais de 100 anos
Isabel Hernandez on Lembram-se do… Viegas?
Maria Teresa Freire Oliveira on Crónica falhada: um ano no Fundo de Desemprego
Maria Teresa Freire Oliveira on REPORTAGEM / Bolas de Berlim porta-a-porta
Eduardo Manuel Dias Martins Aroso on Crónica falhada: um ano no Fundo de Desemprego
Maria Madalena >Ferreira de Castro on Crónica falhada: um ano no Fundo de Desemprego
Eduardo Manuel Dias Martins Aroso on INSÓLITO / Tacho na sessão da Câmara de Miranda
Ermenilde F.C.Cipriano on REPORTAGEM / Bolas de Berlim porta-a-porta
Eduardo Manuel Dias Martins Aroso on De onde sou, sempre serei
Carlos Santos on Revolta de um professor
Eduardo Varandas on De onde sou, sempre serei
Norberto Pires on Indignidade [Norberto Pires]
Luis Miguel on Revolta de um professor
Fernando José Pinto Seixas on Indignidade [Norberto Pires]
Olga Rodrigues on De onde sou, sempre serei
Eduardo Saraiva on Pergunta inquietante
mritasoares@hotmail.com on Hoje há poesia (15h00) na Casa da Cultura
Eduardo Varandas on Caricatura 3 (por Victor Costa)
Maria do Carmo Neves on FERREIRA FERNANDES sobre Sócrates
Maria Madalena Ferreira de Castro on Revalidar a carta de condução
Eduardo Saraiva on Eusébio faleceu de madrugada
Luís Pinheiro on No Café Montanha
Maria Madalena Ferreira de Castro on Eusébio faleceu de madrugada
José Maria Carvalho Ferreira on José Basílio Simões no “Expresso”
Maria Madalena Ferreira de Castro on Carta de Lisboa
Manuel Fernandes on No Café Montanha
Rosário Portugal on Desabamento na Estrada de Eiras
manuel xarepe on No Café Montanha
Jorge Antunes on Mataram-me a freguesia
António Conchilha Santos on Nota de abertura
Herminio Ferreira Rico on Ideias e idiotas!
José Reis on Nota de abertura
Eduardo Varandas on Caricatura
Eduardo Varandas on Miradouro da Lua
Célia Franco on Nota de abertura
Apolino Pereira on Nota de abertura
Armando Gonçalves on Nota de abertura
José Maria Carvalho Ferreira on Nota de abertura
Jorge Antunes on Nota de abertura
João Gaspar on Nota de abertura
Ana Caldeira on Nota de abertura
Diamantino Carvalho on Mataram-me a freguesia
António Olayo on Nota de abertura
Alexandrina Marques on Nota de abertura
Luis Miguel on Nota de abertura
Joao Simões Branco on Nota de abertura
Jorge Castilho on Nota de abertura
Luísa Cabral Lemos on Nota de abertura
José Quinteiro on Nota de abertura
Luiz Miguel Santiago on Nota de abertura
Fernando Regêncio on Nota de abertura
Mário Oliveira on Nota de abertura