SALVADOR MASSANO CARDOSO
Cheguei cedo. Conheço bem a cidade e o local. Ao descer a avenida lembrei-me de pessoas da minha idade, quis recordar os seus nomes mas não consegui. Não interessa, do passado fica pouca coisa, apenas algumas recordações, sentimentos e saudosas emoções.
O esqueleto da zona não sofreu grandes alterações, apenas as carnes, tendões e músculos é que são diferentes, contrariando a velhice, rejuvenesceu, mas com tristeza e saudade de vidas de outrora.
Cheguei cedo. Fui dar uma volta e beber um café. Na esquina encontrei um. Ainda lá está. Entrei e sentei-me. Olhei por uma janela agora voltada para a enorme rotunda. Em tempos permitia ver a estação, agora não. Olhei para a parede e vi uma enorme fotografia de uma velha locomotiva a vapor. Pensei, deve ser a mesma que daqui me levou para casa há quase meio século. Nesse dia fiz algo que nunca esqueci. Tive de ir a Viseu comprar “Os Lusíadas”. Ia para o 5.º ano e na minha terra não se vendiam livros. Comprar “Os Lusíadas” foi um verdadeiro ato iniciático. Senti-me muito importante. A partir de agora sou alguém, vou ler e estudar “Os Lusíadas”.
Ouvia, incessantemente, que era muito confuso e extraordinariamente complicado, sobretudo na divisão das orações. Deixá-lo, pensei. Na ânsia de o começar a ler, deu-me para decorar os primeiros versos. Entendia que passaria à condição de erudito assim que chegasse a casa. Assim fiz. Sentado naquele local, junto à janela de um dia belo e quente de setembro, comecei a memorizar, depois de beber um “Nescafé”. Que estilo! Aos 15 anos, sentado num café a ler “Os Lusíadas”, um momento inesquecível.
“As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram”.
Não foi fácil. Recordo, sobretudo quando tropeçava na Taprobana, que não sabia dizer como devia ser e trocava por Trabopana e coisas semelhantes. Era uma inquietação. Mesmo durante a viagem de comboio, provavelmente puxada pela máquina que estava na foto da parede, memorizei várias vezes, até suspirar de alívio quando consegui dizer Taprobana, os primeiros versos. Que raio de nome o Luís de Camões escolheu. Mas onde ficava a dita Taprobana? Devia ser para os lados da África, adiantei.
Ao chegar a casa, no “rápido” que devia andar a pouco mais do que 25 km/ hora, mostrei triunfantemente o primeiro livro que comprei sozinho.
– Já sei os primeiros versos. Decorei-os.
– Ai sim? Então diz lá.
Comecei, mas ao chegar à dita cuja, meti as mãos pelos pés, engasguei-me e disse:
– Que chatice. Espera aí, engano-me sempre.
Li novamente e disse:
-…Taprobana… Em perigos e guerras esforçados…
E foi assim que comecei a ler Os Lusíadas há quase 50 anos…
É sempre bom recordar o passado, ainda por mais quando ele está associado à nossa mais importante obra literária e uma das mais admiradas pela comunidade ligada à cultura e ao estudo da literatura universal. Os Lusíadas como poema épico que retrata os feitos da nossa epopeia marítima, foi ostracizado e retirado dos currículos escolares, logo a seguir ao 25 de Abril, por ser considerado uma obra de cariz colonialista. No entender de alguns iluminados, trata-se de uma obra que faz a apologia do colonialismo. Houve até um célebre secretário de estado, que no período pós 25 de Abril, fez publicar uma Portaria onde se proibiam certas obras de cariz fascista, em que se incluíam Os Lusíadas. Propondo-se, até, fazer um verdadeiro auto de fé, para erradicar, das bibliotecas escolares, uma enorme quantidade de livros conotados com o regime anterior. Aliás, o próprio Luís de Camões foi vilipendiado e acusado de colonialista. É caso para dizer onde chegou a cegueira ideológica.
Ola eu definitivamente adoro este editorial e que tem sido tao fantasticoque irei salva-lo. Uma coisa a dizer, a analise excepcional que deve ter feito eh definitivamente extraordinaria!