NORBERTO PIRES *
«Pode crer, miss Machado, que nunca encontrei ao longo do meu percurso um povo tão sensato como aquele a que você pertence. Um povo nobre, sem álgebra, sem letras, 50 anos de ditadura nas costas, o pé amarrado à terra, e de repente aparece um golpe de Estado, todos vêm para a rua gritar, cada uma com a sua alucinação, seu projeto e seu interesse, uns ameaçando os outros, corpo a corpo, cara a cara, muitos têm armas na mão, e ao fim e ao cabo insultam-se, batem-se, prendem-se, e não se matam. Eu vi, eu assisti. É esta a realidade que é preciso contar antes que seja tarde.», Lídia Jorge, “Os Memoráveis”
É verdade. Agora com a distância suficiente, a revolução portuguesa foi um evento memorável e muito significativo. Fomos capazes de uma transição sem sangue, com loucuras e abusos tristes, mas sem irreversibilidades, saímos de um ditadura de interregno de cabeça erguida, olhando em frente e sendo capazes, às vezes na nesga, de promover os caminhos certos. Mas, o que aconteceu desde 1974?
Porque falhamos no objetivo de construir o país que temos a capacidade de ser? Por que razão não fomos capazes de organizar o país para responder às necessidades das pessoas, e acima de tudo acordar um conjunto de objetivos que fossem comuns a todas as forças políticas? Por que razão não apostamos naquilo que nos poderia diferenciar, e desperdiçamos todos os apoios que fomos capazes de obter?
Por que razão é Portugal um país tão desigual de norte a sul e do interior ao litoral? Por que razão não desenvolvemos as políticas públicas certas, associando-as aos fluxos financeiros de que beneficiamos? Por que razão um país com estas gentes, com esta qualidade de território, com esta cultura, com estas tradições, com esta diversidade e qualidade de atividades, não foi capaz de se diferenciar e mudar a sua sina?
Isto anda sempre na minha cabeça. Um povo que foi capaz do 25 de Abril, ultrapassando todas as dificuldades e tendo a nobreza de não matar, estava encaminhado a ter o destino que afinal não teve. Se eu pudesse falar na cerimónia comemorativa do 25 de Abril na Assembleia da República era isso que diria.
Convidava muitas de pessoas para falarem comigo: atores, músicos e pessoas comuns: fazia algo como no vídeo cujo link vos deixo abaixo. E cantávamos. Os portugueses cantam sempre, mesmo nas situações difíceis. A palavra passe da revolução era uma cantiga de Paulo de Carvalho (“E depois do Adeus”), e a própria revolução têm na cantiga “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, um símbolo bem marcado. Muitas outras cantigas estão associadas a esse evento e ao seu espírito, pelo que basta uma simples melodia de passagem ou o trautear da letra para conduzir a nossa memória a esse dia de libertação.
O povo que fez o 25 de Abril não pode ter falido 3 vezes depois disso, sem tirar consequências. Não bate certo. Não pode pensar que os valores do 25 de Abril, ligados à solidariedade, à liberdade, à responsabilidade, à responsabilização, ao mérito, etc., são coisas vãs e dispensáveis.
Não pode ter do Estado a mesma ideia que se tinha na ditadura que todos rejeitamos. Por isso esse povo aceitou financiar, ser contribuinte, de um modelo de Estado que presta serviços comuns, garante a saúde, a educação, a justiça, o apoio social, etc., e gere os interesses comuns desenvolvendo políticas sufragadas em atos eleitorais regulares. É urgente perceber o que falhou e corrigir (reformar), porque mais do que uma mensagem de esperança o 25 de Abril é um compromisso de todos nós com o futuro.
NOTA: Este texto é acompanhado de um vídeo.
* Professor universitário. O autor escreve segundo as regras do novo AO.