Dona Isabel de Portugal! Rainha Santa!
É com olhos carregados de espanto que todos observam esta enorme multidão que aqui se juntou, espontaneamente, vinda de todos os bairros da cidade, das vilas e aldeias das redondezas, e muitas de tão longe, que podem chamar à sua caminhada uma verdadeira peregrinação.
Por isso é natural que nos façamos a pergunta sobre a razão de tão vasto ajuntamento, reconhecendo, à partida, que figura pública alguma, das que hoje por aí se pavoneiam em busca de algum aplauso que satisfaça a sua vaidade mal dissimulada, será capaz de fazer reunir. E eu, que quase nem me atrevo a falar, em nome de todos, à majestade da realeza e à candura da santidade que refulgem na vossa pessoa ornada do oiro mais fino, das mais acrisoladas virtudes e do mais esplendoroso estatuto de realeza merecida por nascimento e por esmerada educação de princesa, sou impelido por todos para vos dirigir a palavra, fazendo meus os sentimentos de quantos aqui se reuniram, não apenas para ver passar a vossa imagem de soberana que, em passo cadenciado e lento, vem trazer alívio aos que dele fazem um anseio quotidiano, e flores, muitas flores, aos que, em hora de algum desalento, recobram ânimo com o odor que se desprende, em fragrância de esperança, das rosas em que é fecundo o vosso regaço abençoado por Deus, que de vós fez mãe e protectora dos pobres e desvalidos, rainha deste povo que nunca deixou de, no seu íntimo, vos prestar vassalagem, e santa intercessora de quantos, em momento de aflição, recorrem ao vosso admirável valimento junto d’Aquele que é realmente santo, santo, santo e Senhor Deus do universo.
Hoje, como sempre, ou talvez mais do que em qualquer outro momento do encontro da Padroeira com o seu Povo, são muitos os que pedem que fale em seu nome, os que, deixai que o exprima assim, me solicitam que desabafe toda a torrente de amargura que lhes invade o coração, que peça a vossa intercessão em favor de um povo oprimido (deste vosso povo, Rainha Santa!), oprimido por alguns que, jurando a pés juntos que fazem igualmente parte da nossa grei, sem olharem a meios e à fraternidade que a todos obriga, se foram afastando, depois de se terem apoderado desavergonhadamente daquilo que, à partida, é de todos, e, mais do que isso, daquilo que é fruto do trabalho e do suor dos que labutam por uma vida mais digna e tranquila, para si próprios e para as suas famílias. Vós sabeis bem a quem me refiro, Senhora! E eles sabem-no também!
Mas como poderei eu, que sou o mais humilde e sem mérito dos vossos vassalos, proclamar, sem me afastar da caridade a que o Evangelho me obriga, fazer chegar aos vossos ouvidos, e através de vós ao trono do Altíssimo, o clamor vindo das funduras da alma indignada do vosso povo que clama, por um lado contra os nefastos desatinos de muitos que, sem competência, sem preparação e sem qualidade, se foram colocando à frente dos destinos da nação; e de outros que, com desonestidade flagrante, foram engordando os seus cabedais, não tendo pejo em declarar como exclusivamente seu aquilo que, por vontade de Deus, a todos pertence? Mais! Como poderei eu que, como o profeta Jeremias, quase nem sei falar – como poderei, sem molestar o bom nome a que, em princípio, todos têm direito, denunciar não apenas as más acções (os roubos descarados, os assaltos ao tesouro público, as corrupções aos mais diversos níveis), mas igualmente os autores dessas más acções, desses roubos e dessas corrupções, aqueles que, para desonra sua e dos seus antepassados, até já perderam o pudor de verem os seus nomes divulgados na praça pública, como se o mal os não atingisse no carácter, eu diria mais, na fundura da alma, sobretudo porque se foram criando sistemas que, infelizmente, os põem a coberto de toda e qualquer sanção, porque os códigos que, por influência sua, uma influência nefasta, se foram forjando, nas costas ignorantes do povo, e perderam o sentido do justo em geral e do princípio de igualdade de todos os cidadãos perante as leis e a justiça em particular? Sim, Senhora e Rainha! Como poderei eu fazer chegar, e sobretudo fazer com que as minhas palavras, que me são exigidas por quase todos os presentes aqui, na praça nobre da cidade, e de modo especial pelos que sofrem e são abandonados à sua sorte de desafortunados da vida, produzam efeito de maneira a que a denúncia não definhe na vacuidade da retórica, mas produza efeitos de mudança, que só pode acontecer com a eficácia das acções de quem comanda, e com a conversão de todos aos verdadeiros valores que estiveram na fundação da pátria portuguesa, que são os valores da fraternidade, os valores da partilha e os valores da honestidade e da honradez nas relações de uns com os outros, mesmo quando se trate de cidadãos de escalões sociais diferentes?
À luz do Evangelho, que está na base das atitudes e dos valores cristãos que nos fizeram crescer como Povo independente e soberano, mas igualmente fraterno e solidário, não podemos silenciar os atropelos que, a coberto dos mais sofisticados meios, alguns deles tornados legais não sabemos de que modo e com que intenções, que se vão fazendo já não no recato do segredo obrigatório de grupos organizados para destruírem a verdadeira identidade da Pátria, mas em plena luz do dia, sem receio da reprovação do povo, cujo queixume agora, empolado por uma comunicação social desvirtuada do seu verdadeiro papel, parece ter sido transformado em aplauso a quantos, perdida a palavra de honra, se não importam que os seus nomes sejam apontados na praça pública, desde que se não toque, nem com o dedo mindinho, nos privilégios que sabem que não conquistaram nem com direitos históricos, nem com o próprio trabalho honrado e persistente, nem com o esforço que torna digna qualquer recompensa.
Rainha e Senhora! Talvez me tenha detido demasiado neste desabafo, que traduz a amargura do povo que sofre na carne o tormento da pobreza e o vilipêndio do desprezo a que é votado por tantos que se tornaram grandes só porque sugaram o suor e o sangue vertidos no trabalho e no esforço dos mais pequenos e humildes. Desabafo justo, de quem sabe que o clamor dos pobres nasce da injustiça que, exercida sobre os indefesos, é sempre um pecado que brada aos céus, mas que não pode fazer secar o caudal deste rio de esperança que corre ainda nas nossas veias e que aqui fez confluir o Povo de Portugal, que continua a olhar para a sua Rainha Santa como a protectora dos desvalidos, como o exemplo de quem proclama, semeia e pratica as obras de misericórdia, e como bem-aventurada, cujo regaço, a transbordar de rosas, nos faz acreditar que, apesar de todos os desmandos, ainda há espaço para o futuro, que depois de cada noite de breu, há sempre um alvorecer luminoso, e que a borrasca de cada tempestade – que a borrasca desta tempestade que nos provocaram, com ventos domésticos e ciclones tenebrosos vindos de fora – pode mudar, com a conversão de alguns corações empedernidos, com a clarividência de outros que finalmente reconheçam que a honestidade e a honradez valem mais do que a ganância e a opulência, e com a participação empenhada de todos, em aurora de uma nova manhã primaveril que nos faça desejar frutos novos, frutos de paz, frutos de conversão e frutos de verdadeiro amor fraterno.
Como diz a Escritura, “a esperança não engana”! Por isso nos reunimos aqui, vergados ao peso da opressão de alguns que se julgam donos do mundo, mas não subjugados à escravidão, porque, com a vossa presença de Rainha, nos sentimos sempre homens e mulheres realmente livres, pois, como dizia Paulo de Tarso, “nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro (…) nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que nos foi dado a conhecer por Jesus Cristo” (Rom. 8, 38-39), pelo qual adquirimos o estatuto da verdadeira liberdade. É por isso, pela liberdade e pela esperança, que, em nome deste povo que vos ama, vestida de rainha ou de burel, embargada, a minha voz vos aclama:
– Salvé Padroeira, Santa Isabel!
A. Jesus Ramos
(em nome do Povo de Coimbra)
Largo da Portagem, 10 de Julho de 2014