SALVADOR MASSADO CARDOSO *
Rumei em direção a Braga para rever o que já tinha esquecido. Entrei na velha sé e fiquei novamente deslumbrado. Num dos altares laterais, três imagens, que descansavam ao pé de um Sagrado Coração de Jesus, chamaram-me a atenção, uma Rainha Santa, empunhando uma rosa, um São Brás e uma lindíssima Santa Apolónia.
As três estatuetas despertaram-me lembranças e algumas emoções. A primeira é a santa padroeira do pessoal feminino da casa, já lá vem de trás a eito. O São Brás comemora-se no dia em que a minha mãe fazia anos e era o seu santo preferido. Volta e não volta apelava ao santo, sobretudo quando adoecia da garganta e dos ouvidos, coisas frequentes da minha infância. Fiquei a conhecê-lo desde muito cedo. Além disso comecei a simpatizar com ele por causa do meu colega de carteira, que se chamava Brás, e sofria de escrófulas horríveis no pescoço que exalavam um pus cremoso e mal cheiroso. Ainda lhe cheguei a perguntar se a mãe não ia em peregrinação ao São Brás por causa disso. Mais tarde é que compreendi a razão, sofria de tuberculose ganglionar.
A terceira santa associei-a sempre a Lisboa, à estação dos caminhos de ferro. Adorava ir a Lisboa, ou melhor, o meu pai dizia que ia a Lisboa e eu dizia que ia a Santa Apolónia. Adorava fazer a longa viagem, de muitas horas, e desembarcar naquela gare cheia de movimento e de rituais enquadrados pela beleza arquitectónica que o fumo das locomotivas não conseguia esconder. Por outro lado, para mim era o fim da linha. E ficava satisfeito por saber que a linha terminava ali!
Esta estação sempre me seduziu, embora o comportamento dos taxistas me incomodasse. Invariavelmente o chauffeur perguntava, vêm da província? A forma como fazia a pergunta irritava-me solenemente. Até que uma das vezes, já era um terço espigadote, lhe retruquei, não, não vimos da província, vimos de Santa Comba Dão. Sabe onde fica? Quando lhe disse de onde vinha, o senhor encolheu-se, fez o sinal de descobrir a cabeça, que, entretanto, baixara, e disse, vêm da terra do Senhor Presidente do Conselho? Sim, desse provinciano. Provinciano não, o Senhor Presidente não é provinciano, disse com uma voz reverente o taxista. Então se ele não é provinciano, por que razão devemos ser nós? Uma canelada à maneira obrigou-me a interromper o diálogo. E o senhor chauffeur, com sotaque e tiques à lisboeta, a querer substituir as origens rurais, levou-nos num ápice ao destino.
Hoje, continuo a gostar da estação de Santa Apolónia, sobretudo quando regresso a casa, mas nem por isso deixo de pensar os muitos episódios que ali vi e vivi. Se soubesse na altura que a Santa Apolónia é a protetora dos dentistas, talvez não ficasse muito contente com o seu nome, já que fui um desgraçado com os dentes e com as torturas tipo inquisição a que fui sujeito. Um trauma que não esqueço.
Ao sair da Sé tropecei num mendigo ajoelhado, e com notórias dificuldades físicas, a tocar o Hino da Alegria com uma flauta. Apesar da simplicidade o quadro emocionou-me. Tocar o Hino da Alegria num país triste e ainda por cima por um ser humano que deve desconhecer o significado dessa palavra mais triste fiquei.
Nas lojas em redor a santaria já não é o que era. Pobre, feia e sem qualidade a contrastar com as velhas obras. Um pobreza triste. Mesmo assim, na vitrina de uma loja vi uma bela Santa Apolónia. Muito diferente das demais, diferente na matéria, madeira almofadada, e no trabalho artístico. Aquilo sim, era verdadeira arte sacra. Perguntei o preço. Obviamente proporcional à qualidade. É a última peça de madeira e a última que o artista fez. Pois, o preço… O senhor olhou-me e viu o meu interesse na peça. Fez um desconto imprevisível e eu nem hesitei. Acabei por adquirir uma Santa Apolónia capaz de fazer inveja à que está na Sé de Braga. Pensei, é a minha loucura de verão.
No regresso, o mendigo continuava a tocar a flauta penosamente. Compensei-o. Olhou e disse palavras simpáticas e profundas, mas mais profundas do que as palavras foi o seu olhar, claro, brilhante, profundo a irradiar um pouco de felicidade. Terminou a sua atuação naquele momento. A Santa Apolónia, embrulhada à maneira, não viu, mas ouviu e sentiu.
Como hoje é o dia de anos do meu filho mais novo, que é médico-dentista, ficou desde já destinada a santa, mas só a leva depois de eu desaparecer…