O Tribunal de Coimbra declarou a insolvência de um dos maiores bastiões da Igreja diocesana de Coimbra, a Gráfica, após 95 anos de intensa actividade.
Criada a 20 de Junho de 1920, com a designação comercial de “Gráfica Conimbricense, Lda.” com a douta intenção de promover a tiragem de três publicações (“Amigo do Povo”, “Correio de Coimbra” e Boletim da Diocese), implantou-se ao tempo na Alta da cidade.
O camartelo que desmantelou parte dessa fatia urbana de Coimbra, para dar lugar à nova Cidade Universitária, hoje conhecida por Pólo I, obrigou-a a transferir-se, em 1944, para o Bairro de S. José, ao cimo da Rua dos Combatentes, num anexo dos espaços do Seminário Maior de Coimbra. E, foi nessa época, que foi “baptizada” de “Gráfica de Coimbra”.
Mais tarde, corria o ano de 1989, passou para novas instalações na Palheira/Antanhol, a sul de Coimbra, para conseguir expandir a laboração no sector gráfico, da impressão e da produção de livros, nomeadamente de Bíblias. Estas últimas que inundavam quase todos os mercados, mesmo os que se pressentiam “materialistas” e à margem da fé em Deus e no seu Filho.
Pisei, durante mais de sete anos, os espaços da “Gráfica de Coimbra” no Bairro de S. José, por ter sido convidado pelo ilustre e amigo professor Urbano Duarte, do Liceu que frequentava, o D. João III, a “alinhar” na Redacção do Jornal “Correio de Coimbra”, de que o conhecido e respeitado Cónego e Jornalista era, então, Director.
Passei ali, durante esses anos, muitas das minhas horas, entre trabalho redactorial, presença nas próprias oficinas – sempre junto de tipógrafos, paginadores e outros trabalhadores – e participando em tertúlias, depois do almoço, no refeitório/bar da empresa, com ilustres personalidades dos mais variados sectores.
Foi um tempo cheio de vivências, de aprendizagens, de conhecimentos, de experiências, e rico de contactos e de alguns deslumbramentos. Invariavelmente, fizesse sol, chuva, frio ou calor, no refeitório/bar da Gráfica sentava-se uma plêiade de figuras de Coimbra, da Região e da Diocese. As mais destacadas da Igreja Diocesana eram, sem dúvida, os cónegos Manuel Paulo e Urbano Duarte, monsenhores Nunes Pereira, Duarte de Almeida (recorde-se a “crise dos padres brancos” na Beira, Moçambique), João Evangelista R. Jorge, José de Oliveira Branco e Adriano Simões Santo e, ainda, os padres Valentim e André (o primeiro gerente da Gráfica e, o segundo, da Direcção da empresa). Por banda da Universidade, pontificavam docentes de reconhecida valia como Sebastião Cruz, Norberto Canha, Ferreira Gomes, Cabré Rocha (esposa de Adolfo Rocha), Aníbal Pinto de Castro, Paiva Boléo, Emille Planchard e tantos outros. Do foro citadino, o emblemático Moura Relvas (tinha sido presidente do Município), Dr. Leitão (director da Cadeia Penitenciária de Coimbra), Miguel Torga e quantos mais que a memória já não alcança. Por parte do Jornal, extra-Director e Chefe de Redacção, por lá se sentavam, sem falta justificada, Maria Espinal, Mário Martins e eu próprio e, por vezes, Carlos Cerca, João Pedro Palhoto, Mário Brito, Pedro Pita, Carlos Fiolhais e outros.
Nessas verdadeiras mesas-redondas sobre todos e os mais diversos temas… aprendi muito, além de, com atenção, escutar vozes de sábias consciências, de avantajadas inteligências e de infindáveis poços de cultura e de sapiência. Cruzavam-se as palavras, abriam-se as opiniões, debatiam-se temas da actualidade, recordavam-se episódios, trocavam-se ideias, projectavam-se corações, mastigavam-se intervenções políticas e provocavam-se – no bom sentido – os fazedores de opinião pública que se “materializavam” nas pessoas de Manuel Paulo, Urbano Duarte, Norberto Canha e Miguel Torga, além de outras personalidades que, de quando em vez, apareciam – Raúl Rego e Fausto Correia (lembre-se o “Caso “República”), padres Cardoso Duarte, Jesus Ramos e João Trindade, os bispos D. Manuel de Almeida Trindade e D. Eurico Dias Nogueira, os jornalistas Penalva da Rocha e Amâncio Frias – para melhor emoldurar tertúlias em que apetecia participar.
O Padre Valentim demorava-se pouco… O dever, de uma Gráfica fervilhante e muito combativa do ponto de vista empresarial, ditava-lhe o passo acelerado e um compasso muito profissional. Não tinha tempo para aquele tipo de diálogos que, e sem se dar por ela, tal era a agradabilidade dos assuntos e dos “palestrantes”, fazia escoar os minutos pós-almoço. Secundado por um padre André actuante e atento à máquina imparável de uma Gráfica que já “dava cartas” nas artes da composição, impressão, gravura, paginação e compilação dos mais variados trabalhos do sector, Valentim era um “expert” em todas essas actividades, porque tarimbado de muitos anos e acolitado por colaboradores, de todas as áreas de acção da empresa, de grande qualidade e mestria.
Sem lamecha despropositada ou a saber a elogio de amigo, o padre Valentim nasceu para aquela arte e conhecia os meandros da maquinaria, estando fadado para gerir, de forma cuidada e muito profissional, uma Gráfica que a sentia como “coisa” dele. Deu-se ao espírito dessa Obra diocesana, doou-se ao trabalho que lhe era exigido diariamente, sacrificou-se por uma empresa que sentia a cada dia e vestiu-lhe a pele.
A passagem para a Palheira – nunca falei com o ele sobre isto, mas pressinto-o – deveria ter ocorrido alguns anos antes, num tempo de fulgor empresarial em que a Gráfica, manietada pelo “pobre” espaço do Bairro de S. José, ficou emparedada.
Depois, e numa perspectiva de investimento esclarecida – faltou-lhe uma premonição da crise que estava para se instalar – o gestor da Gráfica empatou milhares de euros em maquinaria moderna e fez crescer as novas instalações para que pudesse competir com a forte concorrência que varria os mercados, principalmente o europeu, onde, com azáfama e muita “diplomacia” comercial, tivera descoberto clientes – de toda a ordem, mesmo os fora da esfera da Igreja – para suportar o peso dos empréstimos.
A 20 de Março de 2012, o bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, talvez convicto de que poderia salvar a Gráfica de Coimbra e – seja-me perdoada a reflexão que, agora, manifesto – mal aconselhado, aliás, como aconteceu perante outros problemas pelos quais a Diocese de Coimbra vem passando, nomeia o padre Manuel Carvalheiro Dias, director do Colégio Diocesano de S. Teotónio para a hérculea tarefa de substituir o padre Valentim na Gráfica.
A hecatombe da Gráfica, ora decretada pelo Tribunal de Coimbra, que não aceitou uma proposta veiculada pelo padre Carvalheiro Dias, a qual sustentava a tese que poderia ser a instituição diocesana “Colégio S. Teotónio” a pedir um PER (Plano Especial de Revitalização), arrasta pessoas para o desemprego e para uma situação de indignidade humana.
Curioso: será que os responsáveis pela Igreja perfilam-se como Pilatos, ou seja, “lavam daí as suas mãos”? A atestar por uma das vozes de um dos trabalhadores, assim parece: Paulo Hingá diz estar surpreendido e desapontado por D. Virgílio Antunes afirmar «nada saber, nem ter entrado em contacto com o administrador de insolvência».
Com a queda da Gráfica de Coimbra, cai a história de uma das mais estóicas empresas do distrito de Coimbra e uma das mais emblemáticas do país no seu sector.
Nesta hora, queremos recordar, apesar do mais e do que poderá ter realizado de menos bom, entre decisões de grande visão, e de enorme competência e arrojo, a figura do padre Valentim Marques, que representa gerações de tipógrafos, linotipistas, revisores, encadernadores, paginadores, funcionários administrativos e tantos outros, como o “braço-direito” desse sacerdote, o Manuel Gândara e, também, o diligente médico que ali prestou serviço, o Dr. A. P. Palhoto, entre outros.
Daqui, deste meu telhado, quero enviar, a todos quantos serviram a Gráfica, mas com trabalho, sacrifício, sentido de serviço, seriedade pessoal e profissional e estima, um forte abraço. Aos que agora foram despedidos, a minha solidariedade pessoal, humana e cristã.